terça-feira, 18 de setembro de 2012

"Minha Opção em Abusar de Drogas" por Embeca Hipara


Minha Opção em Abusar de Drogas por Embeca Hipara (pseudônimo)

Esta é a tradução da introdução do livro 'Minha Opção em Abusar de Drogas' (ou em inglês 'My choice to abuse drugs', escrito por um dissidente de um satélite soviético que se mantém anônimo temendo represálias até hoje, e foi escrito originalmente como panfleto político anti-proibicionista sem fins lucrativos), traduzido pela F.O.A.P. (Forças Organizadas Anti-Proibicionistas), Coletivo Princípio Ativo de Porto Alegre e um jornalista anônimo.

 INTRODUÇÃO

A

Uma vez há algum tempo, eu e um amigo meu estávamos sentados num banco de uma típica praça pública, com jardim - dessas que ficam entre pequenos blocos de apartamentos -, próximo ao centro da cidade de Sofia . Fazia uma hora que a chuva havia parado, e encontramos com sorte um banco que não estava molhado - protegido da chuva pelos galhos de uma castanheira - e ali, dividíamos um baseado. Em meio a isso, notamos uma turma de senhoras, que estavam sentadas, paradas no espaço vazio da outra ponta do jardim.
Ninguém nunca sabe o que esperar de uma turma de senhoras. Nos idos de 1989, muitas delas tinham por aqui o hábito de denunciá-lo à polícia secreta, se por acaso você fizesse piadas sobre o partido comunista, ou se você ouvisse "música capitalista" - e um hábito desses aí não costuma morrer fácil, sendo mais provável que acabe se adaptando a novas realidades, como uma Guerra às Drogas, por exemplo.
"Agente" é a gíria mais usada por aqui para falar dessas pessoas curiosas demais, geralmente mais velhas, que observam você por trás das cortinas de suas janelas,

- Olha ali cara.. parece que tem um agente no terceiro andar.
- Qual deles? Ah sim.. então, vamos acender um cigarro. Aja naturalmente.

Assim que a erva fez efeito, as cores ficaram mais brilhosas que o comum, os sons da cidade e dos insetos ficaram mais destacados, e as batidas do coração mudam de ritmo. No chão já seco logo abaixo do banco do jardim, algumas lesmas e caracóis vagueiam, em seus delírios de câmera lenta, deixando trilhas brilhosas na grama e nas rachaduras do concreto.
"Olha isso", eu disse, e coloquei a ponta do cigarro bem em frente a um caracol. Após um bom tempo de observação - algo típico de um maconheiro -, o caracol havia chegado até o cigarro e, ao invés de simplesmente dar a volta por ele, parou bem na frente. Quinze minutos depois, três caracóis e uma lesma já haviam se juntado à festa. Como estátuas, ficaram ali, parados em frente à bagana. "Eles estão ficando chapados", meu amigo falou. "Sim", eu respondi.

- Será que é perigoso para eles? Assim, venenoso ou algo do tipo?
- Bem.. sem dúvida é tóxico para nós. Então não vejo porque não seria para eles.
- Será que eles podem morrer depois da exposição ao cigarro?
- Não faço idéia.. mas eles provavelmente vão morrer, ou podem ficar doentes, ou coisa do tipo.
- Isso não lhe incomoda?

Essa pergunta me fez repensar éticas, memórias e pensamentos - tarefa que pode exigir considerável esforço às vezes, quando se está chapado. Acabei respondendo algo do tipo: "Meu posicionamento é o seguinte, que caracóis são criaturinhas patéticas. No pouco tempo em que vivem, elas ficam tentando sobreviver e procriar. Elas estão aí, sendo esmagadas por pés, infectadas por bactérias, amassadas por carros. Até onde eu saiba, elas sequer possuem consciência, mas são como pequenos robôs que sentem dor, prazer e talvez algumas vezes, confusão, e que tentam desesperadamente fazer aquilo que foram programadas para fazer - procriar - antes que algo aconteça. Neste exato momento, enquanto elas ficam intoxicadas ou chapadas, como nós estamos dizendo, elas estão fora do programa que controla suas vidas, pelo menos por um pouquinho. Isso é a coisa mais próxima da liberdade, de alguma coisa como "individualidade", que elas poderiam um dia alcançar. Talvez todas morram em menos de meia hora. Não vou me sentir um assassino. Na verdade eu acho que até desejaria, se algum dia eu fosse um caracol ou uma lesma, que alguém viesse me oferecer um cigarro".

B

Há um pouco de arrogância, e uma bravata desnecessária, naquele argumento, mas de qualquer maneira eu ainda mantenho aquela atitude, que me fez dizer isto. De fato, eu a mantenho com mais convicção e argumentos mais desenvolvidos do que eu tinha naquela época. Considere eu. Onde eu estou neste jogo de destinos? Há uma eternidade antes do meu nascimento, há uma eternidade após minha morte. Planetas lentamente flutam no espaço, virando seus diferentes lados para os sóis em torno dos quais eles giram, os próprios sóis seguem seus padrões de movimento por milhões de anos, no nosso planeta montanhas mudam, continentes colidem e se reagrupam, oceanos evaporam, milhares de espécies de animais, pássaros, insetos, aparecem, se desenvolvem por milhares ou milhões de anos, e depois desaparecem. Quem sou eu? Minha vida é uma pequena faísca que está lá por um segundo, mesmo mil vezes menos que um segundo, depois desaparece. Puf! e eu me fui. No meu entendimento, durante esta minha vida eu posso fazer o seguinte:

a) seguir meus programas biológicos - os instintos das espécies a que pertenço - os "reflexos herdados", e meus "reflexos adquiridos" - hábitos simples que eu automaticamente aprendo do ambiente. Isto não me faria diferente de uma hiena ou de um mosquito.

b) eu posso também ser um humano, ultrapassar partes dos meus instintos e seguir programação social, que tem moldado minha psiquê desde meu nascimento, gerada por meus pais, minha educação e a sociedade como tal. Tal programação social molda o pensamento, as emoções e os hábitos do indivíduo humano do nascimento à morte, diferentemente, em diferentes sociedades e idade: de tal forma que eu faço, penso e vejo o que outras pessoas me dizem para fazer, pensar e ver.

Isto me faria um boneco biomecânico, que sente dor, prazer e talvez, às vezes, confusão, mas é diferente de um animal pois segue não instintos - a programação da natureza, e sim reflexos sociais - a programação da sociedade.

c) A terceira opção é manter as tentativas de rompimento - me desprogramar, me estudar e ver partes de mim que são de "fora", que são de "dentro", e talvez algum dia alcançar a transição de ser um típico representante de minha civilização - um triste e doente macaco com problemas emocionais e desilusões - a ser uma "pessoa" "autêntica", "real". Não apenas reconhecendo quão loucos todos são, e quão louco eu sou, não apenas tentando descobrir uma maneira de combater toda esta loucura, mas também tentando experimentar a vida em si, sem intermediários, experimentar a vida como tal, e não a versão distorcida, rasgada que foi jogada em minha cara, para ser seguida sob a ameaça de violência, prisão ou segregação mental.

É claro que este caminho do uso das drogas é perigoso - mesmo ignorando que aquela cadeia ou hospício estão a um fio de cabelo de distância - um erro durante a prática em si pode levar a doença ou morte.

Mas todos nós morremos. E ninguém está qualificado para escolher, por mim, quando e como eu morro. Na maioria, e talvez em todas as constituições das nações mundiais, o cidadão tem "um direito de viver". Mas nossas vidas não são eternas. Elas são eternas em um sentido religioso, mas nas leis existentes não há a vida eterna que é protegida, e sim a finita vida biológica de nossos cidadãos. E como humanos não são imortais - nós somos mortais - todos nós morremos, o "direito à vida" não significa o direito de não morrer - isto é impossível. Significa o direito de não ser assassinado. Significando o direito de não ter outra pessoa decidindo por você quando e como você morre.

Meu nascimento não foi minha escolha mas minha morte certamente pode e deve ser. Desde que eu não machuque ninguém diretamente - e eu certamente não mato, roubo ou estupro - então eu deveria ser deixado comigo em paz. Eu inteiramente concordo com a visão de que se todos fossem cabeças-duras como eu, a sociedade iria entrar em colapso. Se todos fossem geólogos abstêmios ou policiais alcólatras em escritórios e tivessem como hobby a observação de pássaros, a sociedade certamente também iria entrar em colapso. É precisamente a interação de pessoas radicalmente diferentes que faz única a nossa civilização e ao mesmo tempo a renova, permitindo que ela se cicatrize e não fique estagnada.

C

Pessoas que usam drogas ilegais, "viciados em drogas", oficialmente são criminosos do pior tipo, que devem ou serem presos para que "cidadãos de bem" não sejam infectados por sua loucura, ou sofrerem uma lavagem cerebral por psiquiatras normalizadores, que em décadas anteriores curaram carinhosamente em várias partes do globo, com suas pílulas, choques elétricos e seringas; crianças e adolescentes da masturbação; dissidentes de anti-comunismo; mulheres por sua "hiper-sexualidade"; homossexuais de sua homossexualidade. Normalizadores. Quando um dos bonecos bio-mecânicos começa a agir de forma estranha, ou a se comunicar com sinais esquisitos, ele tem de ser jogado fora ou "consertado".

- "Outro com o cérebro quebrado, doutor."
- "Ah então é isso? Vamos dar uma olhada...Hmm sim, ah, sim isso...Enfermeira! Meio metro de fiação, um conjunto de circuito B de percepção de profundidade de classe e um inibidor sexual tipo 3."

Nesse livro eu tento principalmente apresentar e analisar os vários argumentos que apóiam a necessidade do meu emprisionamento e lavagem cerebral, enquanto ao mesmo tempo apresento meus argumentos sobre como não devo ser preso ou sofrer uma lavagem cerebral. Há também alguns pensamentos posteriores e comentários adicionais. E uma observação final: mesmo se a pessoa X não usa drogas para nada 'útil', e só vaga por aí chapado, mesmo assim isso não deveria fazer dessa pessoa uma criminosa. A pessoa mais inútil do mundo não é criminosa até que mate, roube ou estupre. Qualquer outra coisa é um julgamento moral de um estilo de vida pessoal, que não deveria ter lugar nas leis de um país que se descreve como 'imparciais', 'democráticos' e 'livres'.


Aqui o link para o livro completo em inglês para quem quiser ler mais:
http://pt.scribd.com/doc/49839/My-Choice-to-Abuse-Drugs